29 julho 2004

caça ao tesouro


Um dia, estávamos nós, catraios, a conversar animadamente, à sombra, que fazia um calor de rachar, e, não sei porque razão veio à baila, assomou à conversa a palavra 'tesouro'.
Provavelmente estaríamos a falar de castelos assombrados, cavaleiros fantasmas, piratas e corsários brumosos, heróis agrilhoados, princesas prisioneiras, moiras encantadas, batalhas imaginadas, e demais fantasias infantis. O que é certo é que alguém disse, e outro alguém confirmou, que conhecia um túnel ali perto, na meia-encosta do castelo, que dava acesso a uma câmara onde existia uma imensa arca com um tesouro, guardada por um esqueleto com uma enorme espada e respectivo capacete e cota de malha.
A princípio torci o nariz. Apesar de púbere tinha já alguma experiência com os espertalhaços, normalmente mais velhos, apostados em enfiar umas grandes barretaças aos mais tolos. E eu podia ser puto, mas não era tolo. Mas o facto de serem dois a testemunhar e a coincidência nos testemunhos e descrições fez-me acreditar que podia ser verdade.

Imagens de jóias, coroas, colares, pulseiras, espadas, adagas, moedas, medalhas e medalhões, tudo em ouro, prata e pedras preciosas, brilhando na escuridão intemporal, preencheram o meu espírito, inundaram a minha imaginação, e de imediato me candidatei para ir ao local.
Mas como ninguém queria ficar de fora, o tesouro seria para repartir em partes iguais entre todos, guiados pelo que tinha dito que já tinha visitado o local, lá partimos numa expedição, após alguém ter ido a casa munir-se duma lanterna.
Não demorámos a chegar, era próximo do colégio que frequentávamos, quase à saída da vila.
A rua, de paralelepípedos de granito, afagados pelas chuvas e geadas, que os tornavam escorregadios, era a descer. O que era uma vantagem para as nossas botas cardadas quando era Inverno. Um pouco de impulso e deslizávamos literalmente pela rua abaixo, como se foramos esquiadores a resvalar pela montanha. Do lado direito, subia por ali acima a encosta do castelo, semeada de pedras, arbustos, pequenas árvores e caganitas de ovelha. Do lado esquerdo, tinha apenas um barranco inclinado que terminava lá em baixo, na estrada que acompanhava o rio, o qual corria manso, sem pressa, refulgindo ao Sol, e na qual desembocava um pouco mais à frente.
Saltámos o murete caiado de branco que bordejava a rua e iniciámos a escalada da encosta. O meu coração batia forte. De súbito, eu estava transmutado num personagem dos livros dos 5 da Enid Blyton que eu devorava com um prazer indescritível. Eles também procuravam, e achavam, tesouros em túneis e grutas. Até havia um personagem de nome Zé, como eu. Rapariga, mas isso, no momento, não interessava para nada. O importante eram as aventuras e as descobertas. Agora, tinha chegado, finalmente, a minha vez.

Não foi necessário escalar muito. Eramos jovens e com a excitação da aventura, rapidamente chegámos à boca do túnel. Não foi difícil encontrá-lo, tinhamos um guia experiente, dos melhores que conheci até hoje nesta minha vida de aventureiro.
Era um buraco pequeníssimo, de pedras soltas e de arestas irregulares, onde os meus ombros mal conseguiam passar. Escuro e ameaçador, lembrava as fauces de um monstro horrendo. Mas já tinhamos chegado até ali. Nem pensar em desistir. Nunca nos perdoaríamos a nossa cobardia. Eramos portugueses, porra!
Juntámo-nos à boca do túnel a decidir quem iria primeiro. Falávamos alto, quase gritando. Não que não nos ouvíssemos, estávamos muito perto uns dos outros. Era por uma razão táctica, destinada a afugentar as alimárias que pudessem estar por ali, nomeadamente cobras, lagartos e, quem sabe?, algum dragão voador cuspidor de fogo. Não que tivéssemos medo deles mas... alguns, como quem não quer a coisa, tinham pegado em pedras e paus.
Lá decidimos quem seria o primeiro. O qual avançou afoito, e mergulhou, desaparecendo no interior do túnel, como que sugado por uma mangueira gigante. Ansiosos e trémulos olhávamos para o interior na esperança de conseguir ver o nosso companheiro, mas a única coisa que víamos era a escuridão.

Creio que fui o segundo a entrar. Mas apenas após o primeiro ter regressado, pois o túnel não permitia mais que uma pessoa lá dentro.
O primeiro regressou, arfando e transpirando, com uma enorme frustração. Serviu-nos a sua tentativa pela descrição que fez da situação no interior, mas ele mesmo não tinha conseguido avançar muito, visto que o túnel estreitava bastante.
Assim, ele saiu e entrei eu. Mal equipado, camisa de manga curta, calções e sandálias, empunhando a fraca lanterna à frente da cara, arrastei-me penosamente no estreito e curto túnel, que não teria mais que cinco ou seis metros de profundidade, esfolei os joelhos, os tornozelos e os cotovelos, arfando com a falta de ar opressiva e o peso de toneladas de terra e rocha do imenso monte por cima de mim, até chegar ao fundo.
A estória poderia ficar por aqui. Não vi câmara, não vi baú, não vi esqueleto. Seria apenas o caso dum moço desiludido. Mas não.

Recordo, porque me ficou gravada a fogo na memória, a imagem da parede do fundo do túnel. Esta tinha um padrão regular e saliente. Fazia-me lembrar uma escada de degraus de pedra que forças medonhas tivessem levantado e inclinado quase na vertical.
E o mais fascinante de tudo é que ao olhar de esguelha para cima vi que existia uma negra abertura, mais ou menos quadrada, no tecto do túnel a coincidir com a 'escada'. Uma abertura pequena, mas com largura suficiente para eu passar.
Tentei torcer o corpo para me virar de barriga para cima para entrar, pelo menos com o torso, no buraco do tecto. Mas tal revelou-se impossível. Os meus 12 anos tornavam-me demasiado grande para aquela manobra contorcionista, apesar dos meus antepassados circenses. O túnel, onde estava literalmente 'encamisado', não tinha largura para que eu conseguisse rodar o corpo.
Ainda pensei que se saísse e voltasse a entrar deitado de costas, talvez conseguisse realizar a manobra. Mas, após avaliar bem o local, cheguei à conclusão que mesmo dessa forma não o conseguiria fazer. Naquele extremo, o túnel tinha espaço para pouco mais que a minha cabeça e a abertura ficaria, assim, a poucos centímetros da minha cara. Não me seria possível sentar-me para elevar o corpo.
Não tive outro remédio senão regressar, rastejando às arrecuas, por onde tinha vindo, até chegar ao exterior.

Os nossos 'informadores', que disseram que tinham lá entrado e visto a câmara, reiteraram a sua história, jurando a pés juntos. Mas como tinha acontecido alguns anos atrás, eles eram mais pequenos e portanto...
Assim fiquei sem saber o que existiria para lá daquela abertura. Nenhum dos meus companheiros conseguiu lá chegar, tal como acontecera comigo. Tinhamos todos mais ou menos a mesma idade, eramos todos mais ou menos do mesmo tamanho.
Quando somos pequenos, desejamos tanto ser grandes. Naquele dia aconteceu-me precisamente o contrário. Desejei ter um corpo bem mais pequeno.

Ficou-me a ideia de que se eu tivesse conseguido passar a abertura em cotovelo, teria entrado na tal câmara, teria visto a arca com o tesouro, teria conversado com o esqueleto...
Resta-me a consolação de saber que, dada a inacessibilidade do local, o esqueleto guardador pode repousar em sossego pois ninguém lhe irá perturbar o sono eterno para pilhar o tesouro que tão ciosamente ele guardou ao longo de séculos, ou talvez milénios.

Sim, continuo convencido de que a arca com o tesouro existe e que está naquele local!

12 junho 2004

estafermo

Aquele era um lugar mágico. Estava cheio de fadas, gnomos, bruxas, feiticeiros e magos, merlins de longas barbas brancas, vestidos de buréis encardidos e escuros. Cavaleiros valentes orgulhosamente brilhavam nas suas armaduras resplandecentes, do alto de gigantescos corcéis brancos. Donzelas de trajes luminosos adivinhando corpos glabros de adolescentes corriam descalças pela relva, rindo alegremente no contentamento da sua etérea juventude. Uma bicha de pirilau era feita de monjas silenciosamente entregues às suas orações mais íntimas, deslizando suavemente pelo lajedo frio como se pairassem acima da terra. Ouvia-se um sino dar as horas, longe, lá muito ao longe. A cobra voadora, gigantesca, que de grande que era, dizia o povo e o povo não mente, tinha a ponta do rabo a assomar num escuro, fétido e lodoso buraco nas margens do rio e a cabeça lá no alto saindo num buraco escuro junto do torreão do castelo, estava na sua quietude silenciosa de quem não quer ser perturbada. E quem é o louco que se atreve a perturbar uma cobra com mais de cem metros!?
O claustro era ortogonal como mandam as regras de construção de claustros, regras cristalizadas e eternizadas no 'Claustrus Faber Autoritate' de Augustus Orare et Plangere. Estava muito degradado para os olhos adultos, que perderam a capacidade de olhar para lá da névoa e ver a realidade como ela verdadeiramente é. Mas para isso existiam os nossos olhos. Os nossos olhos ainda tinham essa capacidade de ver o real. E viam essa realidade mística e fantástica. Por isso, iamos às vezes brincar para aquele convento abandonado. Que para nós continuava vivo e esplendoroso como sempre havera sido.
Não posso esquecer a primeira vez que lá fui, talvez com 10 ou 11 anos. Alguém do grupo de gaiatos que eramos nós tinha proposto que lá fossemos. Iamos com um propósito determinado. Ver e acordar um gigante que ali pernoitava e que dava chapadas se lhe atirássemos uma pedrada. Assim, pusemo-nos a caminho.
Chegamos relativamente rápido, pois não era muito longe da vila. Pelo caminho passamos com a maior das cautelas pelo tal enorme buraco, onde por vezes assomava a cabeça da cobra voadora, que naquele dia devia estar a dormir e não deu pelo nosso silêncio, visto que não nos presenteou com a sua manifestação. Eu ia atento e preparado para, ao mais ténue sinal de perigo, dar meia volta sobre os calcanhares das botas cardadas e voar de volta à segurança do povoado. O líder da expedição conduziu-nos através de entulho, paredes esboroadas, degraus tombados, colunas partidas, portas sem portas e pelo claustro sem tecto até ao local exacto, que ele bem conhecia de expedições anteriores.
E não é que era verdade!? Lá estava ele, o gigante. Deitado de costas, talvez dormisse, no fundo dum grande buraco aberto nas lajes do chão. Era enorme e o seu peito vermelho tinha um ar ameaçador. Olhei-o tremendo com juvenil curiosidade. Mais do que vi, senti o seu terrível arcaboiço feito de madeira dura. Estava deitado de costas nas pedras duras e tinha um dos braços aberto e estendido para o lado como num convite para um abraço fraterno. Parecia metade de um Cristo. Estava de olhos fechados, dormia. Invectivado pelos outros, atirei-lhe a primeira pedrada, em cheio na peitaça, mas o gigante nem pestanejou. Talvez tivesse pensado que era algum mosquito zarolho esvoaçante que tivesse chocado contra o seu imponente arcaboiço. Todos quiseram experimentar acordar o monstro. Foi terrível a saraivada de pedras que se seguiu. Mas nada aconteceu. O gigante continuou adormecido e não nos ligou nenhuma, nem para nos dar um estalozinho que fosse.
Desistimos e fomos embora de volta para casa, emudecendo à passagem da caverna da cobra voadora, pois cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Pelo caminho eu ia pensando no que poderia ter falhado. Subitamente tive a intuição: Fé! Como aquele era um lugar mágico apenas a Fé permitiria acordar o gigante do seu sono eterno, daquela espécie de coma em que vegetava, e fazê-lo reagir. Infelizmente nunca mais voltei a tentar acordar o gigante, pois sentia a Fé dentro de mim e acreditava-me capaz de o conseguir.
E foi pena. O jeito que nos teria feito se o tivéssemos conseguido acordar e ele se tivesse aliado ao nosso grupo de catraios. Com um gigante daqueles do nosso lado certamente ninguém teria coragem para fazer mal a algum de nós. Ele seria uma espécie de anjo protector. Mas não conseguimos e, assim, tivemos que crescer e aprender a defendermo-nos apenas com os nossos corpos e espíritos e sem guarda-costas.

Nomeadamente das pedradas com que eramos presenteados se nos atreviamos a ir à Barrosinha sozinhos.

30 maio 2004

porquê?

Porquê agora este desejo de escrever sobre Alcácer do Sal? Acaso ou necessidade? Qual a importância desse lugar tão longínquo na memória e que me leva a recordá-lo com tanta nostalgia? Porque foram talvez os mais belos, esperançosos e importantes momentos da minha vida.
Cheguei a Alcácer com cerca de 7 anos de idade e lá vivi até cerca dos 12 anos (tenho agora 47). Fácil é perceber como aquele é o período mais importante e determinante na formação de uma pessoa. Lá construí muito do meu carácter e personalidade. Lá fiz a escola primária, a partir da 2.ª classe e os primeiros três anos de ensino liceal. Lá fiz os meus primeiros amigos e, sobretudo, cúmplices de aventura e malandrice. Lá fiz as primeiras descobertas e vivi as primeiras e melhores aventuras. Desvelar dum mundo fabuloso, fascinante e miraculoso.
E é isso que quero contar. O que vivi e o que senti naquele lugar longe de tudo. Naquele mundo que era o mundo todo. Conforme for lembrando assim irei aqui colocando estórias, episódios, acontecimentos diversos.
De muitos dos personagens já nem os nomes recordo, de fraca que é a memória. Também hoje já não tenho contacto com nenhum. Ficaram para trás, naquela terra distante. Esfumaram-se quando de lá saí, como génios da lâmpada. Também eu para eles seguramente já não existo e sou apenas uma vaga e difusa recordação dos tempos da escola, da carica, do berlinde e do pião, do salto ao eixo, dos bonecos da bola, das botas-de-borracha, dos calções e das botas cardadas. De tanta coisa, afinal.
Acredito que a memória nostálgica é o motor do eterno retorno e, por isso, para já, oiçamos Zaratustra:

«Entoarei o meu cântico aos solitários; aos que se retiraram sozinhos ou aos pares para a solidão; e a quem quer que tenha ainda ouvidos para as coisas inauditas, confranger-lhe-ei o coração com a minha ventura.»