27 janeiro 2005

mais rápido que a galera do tomate


A minha memória pode trair-me. Mas o surrado Livrete em papel verde, à frente manchado dum castanho a lembrar a ferrugem dum outono alentejano, e que carinhosamente conservo na minha excêntrica e anacrónica colecção de velhos documentos, aí está para confirmar, pelo menos, alguns dados e a data: 1245 Câmara Municipal de Alcácer do Sal Livrete de Matrícula e Registo de Velocípede N.º 42-13 Matrícula n.º 42-13 Data 2 Abr. 1968 Características Marca Rosengar Pneumáticos 2 Tara 15 Kg. Lotação O condutor Serviço Particular Propriedade esborratado-ilegível Em 2 Abr. 1968 Residência Alcácer do Sal O Chefe da Secretaria J-qualquer-coisa-ilegível Preço 1$.

O meu pai tinha-ma prometido 'se passares para o 2.º Ano ofereço-te uma', e inclusivamente perguntara-me de que cor a queria. Verde, é claro. Era o Sporting e era o grande campeão sportinguista Joaquim Agostinho, que eu todos os anos ia ver passar na estrada para Grândola, na subida após a ponte levadiça, quando havia Volta. A cor nunca poderia ser outra. Eu era um lagarto convicto.
O ano lectivo ainda não tinha acabado, mas eu insistia todos os dias e a toda a hora com o meu pai para ele não se esquecer da promessa feita, até porque as notas eram promissoras como de costume, e eu acreditava na vitória lectiva, pelo que os meus argumentos eram fortes o que, aliás, ele bem sabia.
Devo ter chateado tanto o meu pai que um dia ele disse-me que já a tinha comprado, que eu só a receberia no fim do ano lectivo depois de passar de ano e, para eu não duvidar, levou-me a vê-la. Era verdade, verdadinha. Lá estava ela, embrulhada em cartão canelado, encostada numa suja parede da oficina, do lado esquerdo da entrada. O homem descolou uma grande parte do cartão, o suficiente para eu lhe poder deitar um olhar guloso e quase incrédulo.
Aquela visão do belo metal verde brilhante entrou-me pelos olhos e quase me cegou. No escuro da oficina foi como se de súbito mil sóis se tivessem iluminado à minha frente. Como quando na noite negra e fria acendemos uma árvore de Natal numa explosão de luz e cor, e a escuridão estremece, vibra, foge e se acoita nos recantos da ausência, do nada.
O meu pai disse-me 'como vês ela já aqui está, agora passa lá o ano que depois recebê-la', e fez um gesto ao homem, que a tapou de novo com o cartão. Despedimo-nos e saímos.
Isto deve ter acontecido por volta de Abril/68. Foi um longo e doloroso período aquele que demorou até chegar o fim do ano lectivo. Não havia dia em que não falasse nela aos meus amigos e lhes relatasse a cor e outros poucos pormenores que conseguira reter naquele ínfimo relance que lhe deitara na oficina, não houve noite em que não sonhasse com ela e com as aventuras que imaginava ir viver na sua companhia.
Enfim, um dia lá saíram as notas e lá se confirmou o meu trânsito para o 2.º Ano. E como o prometido é devido, lá fui com o meu pai à oficina buscá-la. Entrámos, cumprimentámos o homem, ele desembrulhou-a completamente, atirou os cartões agora inúteis para um monte de lixo a um canto e entregou-ma.
Peguei-lhe um pouco timidamente e hesitante como se ainda não acreditasse que era minha. Até parecia que nunca tinha pegado numa, tal era a forma indecisa como a segurava, sem saber muito bem o que fazer. O meu pai deu-me os habituais conselhos a respeito do assunto e lá saímos da oficina, após as normais despedidas.
À medida que nos deslocávamos pela rua fora fui ganhando maior confiança, repetindo para mim mesmo que ela era minha e que eu fazia com ela o que quisesse, e a pouco e pouco o orgulho foi crescendo também, sentia-me engrandecido perante o olha das pessoas que me viam passar com ela ao meu lado. Finalmente, perdi completamente o acanhamento e... montei-a! Com a prática adquirida a montar as dos outros, lancei-me a grande velocidade pela rua fora deixando para trás o meu pai a gritar cuidados.
Tinha que a ir mostrar aos meus amigos. Ninguém poderia mais duvidar. Eu também tinha uma e bem bonita por sinal. Novinha em folha, era a mais bela de toda a Vila e arredores. E era minha.

Finalmente, eu podia fazer corridas com as galeras do tomate puxadas por tractores na estrada da Barrosinha, sem ter que usar as bicicletas dos outros. E todas as corridas que fiz, ganhei!

08 janeiro 2005

a receita


Esta estória é rigorosamente verídica, ficou famosa e foi contada, recontada e sussurrada ao longo de muitos anos pelas gentes da vila, em surdina no meio de risotas tímidas pasmadas em bocas desdentadas a exalarem etéreos d'alho, pelo meio do pião, da carica, do berlinde ou do eixo, ou mesmo em grossa e alta voz em momentos de grande galhofeirice, swingada e tocada pela copofonia tinta, ensopadora de nacos do belo chouriço porqueiro adossado em valentes pedaços de casqueiro alentejano.
A probabilidade de algum dos envolvidos ainda estar vivo, mais ainda a forte probabilidade de descendentes vivos e a residirem na terra, aliadas ao pudor ético que norteia o meu ser, impedem-me de revelar os nomes das pessoas que fizeram o acontecimento.
Assim sendo, dou-lhes pseudónimos, coloco-lhes postiça nomenclatura, mas sei que alguém que me leia e que conheça o caso, facilmente se lembrará dele e das figuras que nele participaram, e assim se tornaram alvo da chacota maledicente típica do meio e da risota geral de miúdos e graúdos e, que sem o imaginarem, aqui e agora se perpetuam nesta esfera virtual.
Foi no tempo em que o Solnado ia à guerra e a encontrava fechada, fantasmagórico contador enjaulado numa caixinha a preto e branco de silenciosa e hipnótica mira-técnica. Era o tempo dos chuis pêlo-de-rato, gordos polidores de esquina.
A paisagem que me rodeava então, impunha-se numa escala de cinzentos que ia do preto ao branco, ou vice-versa para quem for do contra (hoje não há azar em ser do contra, mas na época ganhava-se um bilhete à borla para passar umas fériazitas em Peniche ou Tarrafal.)
Até os castanhos lodosos das águas do Sado passavam cinzentos por baixo da ponte levadiça, que já não o era por inútil função eréctil.
Devo ter ouvido a estória da voz da minha mãe enquanto ela conversava na escada ou na rua com alguma vizinha, ou então do meu pai, que todos os fins de tarde trazia para jantar as últimas que tinha ouvido na tasca, no meio duns tintos e duns tremoços e dumas alcagoitas.
O meio era pequeno, toda a gente se conhecia, falava-se por todo o lado, sobretudo da vida alheia pois pouco mais era permitido, não foi difícil a estória espalhar-se e chegar-me aos ouvidos. Conta-se em poucas palavras:

A comadre Jaquina (pseudónimo) apresentou-se um belo dia no consultório do dr. Manel (pseudónimo).
Este era um tipo grande e abrutalhado, com o seu quê de labrego, e era o ginecologista da vila. Não estou seguro de que tivesse efectivamente a especialidade de Ginecologia. Talvez fosse apenas o que se chamava de médico-parteiro, visto que ia a casa das parturientes fazer os partos, e lá vinha ao mundo mais um moço ou uma moça, com o destino marcado de um dia ser conhecido por compadre ou comadre e alimentar o anedotário nacional. Como quer que seja, era o que na altura as mulheres chamavam 'médico das senhoras'. E as conversas sobre o que se tinha passado nas consultas era do exclusivo domínio feminino. Era uma área onde os homens não eram chamados, nem metiam prego nem estopa.
Mas a terra era pequena, só existia uma farmácia, e toda a gente se dava com o farmacêutico, o sr. Abílio (pseudónimo). Ninguém melhor para 'descobrir' a doença de cada um como o farmacêutico, que pelo rápido exame da receita e dos medicamentos receitados, que afinal era ele que aviava, sabia logo o que cada um ou uma tinha ido fazer ao médico e do que padecia o doente. Quantas vezes o próprio farmacêutico substituia o médico, para aqueles que nele tinham maior confiança.
Ora a nossa doentinha era um tanto ou quanto tola, e não só, como se vai ver. Não que fosse atrasada mental, nada disso. Até era casada, com o João (pseudónimo), serralheiro mecânico dos bons, e com ele tinha um filho que era considerado pelos professores um rapaz muito inteligente. Apenas não era uma mulher muito esperta ou perspicaz, pois nem sequer leu a receita ou perguntou ao médico o que este lhe receitara. Simplesment saiu do consultório e foi à farmácia do Abílio aviar os medicamentos. E foi a conjugação destes factores que tornou pública a estória. Se ela ao menos tivesse lido a receita...
Mas voltemos um pouco atrás, para não perder o fio à meada.
Um belo dia de manhã, Jaquina vestiu-se como de costume, pegou na já muito surrada mala de napa preta, comprada na feira alguns anos antes, saiu da escura casa duma assoalhada onde habitava e lá foi ao médico. Empurrou a porta, entrou no consultório, cumprimentou o dr. Manel e sentou-se na cadeira que este lhe indicou. Depois dos habituais "como é que vai a vida? e etecéteras" começou a consulta. Quando inquirida pelo dr. Manel sobre qual era o seu problema, queixou-se de que sentia dores e pruridos na barriga, no baixo ventre, ali prós lados da pintelheira.
O dr. Manel acercou-se dela, observou-a nas zonas indicadas com aquele seu ar de quem já viu muitas gretas na vida e as acha todas iguais e não fez qualquer comentário. Sentou-se atrás da sua secretária, pegou numa folha de papel e na caneta e, interrompendo de vez em quando para olhar a doente, passou uma receita que entregou à comadre Jaquina.
Satisfeita, Jaquina pegou na receita, pegou na mala de napa, despediu-se e saiu do consultório. Na rua, dirigiu-se rapidamente à farmácia do Abílio, situada ali para os lados da Câmara, onde entrou. Lá dentro estava apenas um velhote mal barbeado e vestido de negro que, apoiado no balcão, animadamente conversava com o farmacêutico, talvez tecendo comentários sobre os tomates, quiçá acusando o tempo de lhes enrugar a pele. Calaram-se quando ela entrou.
Jaquina deu os bons-dias e entregou a receita ao farmacêutico e aguardou.
O farmacêutico recebeu a receita, olhou o papel e, com a sua prática de longos anos, decifrou a letra do médico.
Silencioso, olhou a comadre Jaquina, olhou a receita, olhou de novo a comadre Jaquina, olhou de novo a receita, olhou de viés o compadre velhote, e dirigiu-se ao interior do estabelecimento.
No entretanto o velhote, silenciosamente, media Jaquina de cima a baixo, detendo-se por breves instantes nas grossas coxas e nas rotundas ancas. O seu escrutínio foi interrompido pelo regresso do Abílio, que trazia algo na mão.
Este, trazendo no rosto o ar mais sério do mundo, parou e colocou o medicamento receitado sobre o balcão em frente da cliente.
Jaquina olhou o objecto, fuzilou com as suas negras pupilas o farmacêutico, e exclamou em voz brava:
— Para que quero eu esta merda!?
Calmamente, o sr. Abílio olhou-a e mostrando-lhe a receita, respondeu-lhe:
— É o que o sr. dr. Manel escreveu aqui: "Um sabonete LUX para lavar a barriga"!